9.10.10

Pelo que?

O homem corria.

No meio do que contabilizava um dia de vida se percebia atrasado para o segundo trabalho. "Logo hoje!" Corria, lamentando ter sido um dia que poderia contabilizar sucesso. O patrão tinha gostado de tudo que tinha proposto na reunião, feito na sua mesa e finalizado no seu quadro obrigações.

O homem sofria.

Naquela idade já tinha se acostumado a dores súbitas e insistentes, mas naquele momento a palpitação só fazia aumentar. Gotas de líquido salgado brotavam constantemente de sua testa. "Logo hoje!" Tinha acordado tão bem, sem dor nenhuma, sua vista estava até mais nítida.

O patrão deu tapinhas na suas costas pouco antes dele ir embora, dando parabéns pela idéia anterior e até a secretaria boazuda deu risada para suas piadas.

Com a recepção tão calorosa da piada, acabou se estendendo demais. No momento não sabia se sentia orgulho ou se amaldiçoava o descuido. O fato é que agora metade do mundo tinha acabado e que tinha que dar conta de todo resto.

Era falta de ar. Era o medo. Transpirava mais. Os passos se arrastavam mais. A cabeça girava mais.

Pontos escuros apareciam a sua frente.Por que escolhera aquele caminho vazio pra dar uma volta?Pra que precisava de atalho?Pressa pra que?Por que tinha saido de casa?Será que era assim que as pessoas se sentiam antes de morrer?Por que não procurava mais seu filho?Quantos anos deveria ter seu neto agora?Por que deixou de falar que amava a esposa perto de seu falecimento?E por que, ó deus, por que tirou da bolsa da Professora Carminha aquele dinheiro quando ela foi conversar com a diretora?

Tinha perdido a condução das 15h30. Agora estava oficialmente muito atrasado. "Droga!" Talvez tivesse sorte, se corresse e pegasse o ônibus no meio do trajeto. Escolheu um atalho. Na rua que passava só havia mais uma pessoa.

No momento em que a vista do homem embaçava e as poucas forças que tinha nas pernas falhavam, ele sentiu esperança. Já tinha desistido de manter-se em pé quando um homem dobrava a esquina. Não era um daqueles negrinhos marginais de quem não poderia se esperar nada. Era um sujeito de boa aparência, branco e bem vestido, apressado era verdade, decerto um sujeito trabalhador.

"Me ajude". Falava nos sopros que lhe restavam. "Me ajude, meu filho. Por favor."

Assim que dobrou a esquina viu aquela cena. Deplorável o velho andava vagarosamente com a mão no peito. Não era daqueles senhores saudáveis e simpáticos que todos queriam para avôs. Era um velho raquitíco e com cara de rabugento, com roupas estranhas e que não combinavam entre si, tampouco com a data vigente. Não sabia o que faria se ele desmaiasse. Torceu para que ficasse de pé.

"Me ajude". Falava nos sopros que não poderia desperdiçar. "Me ajude, meu filho. Por favor."

Naqueles átimos de segundo, que só desperdiçava por que pensar não excluia andar apressado, concluiu que não havia ninguém para julgar a sua apatia e muita gente para julgar o seu atraso. Torceu para alguma outra boa alma chegasse e levantasse o senhor, chamasse uma ambulância, abraçasse o velho e dissesse boas palavras como "Tudo vai ficar bem, o senhor, vai ver", enquanto desse sopa na sua boca.

O fato é que agora todo aquele inteiro de mundo tinha acabado e que tinha não tinha mais nenhum resto para dar conta. O homem caido no chão sem força para gritar, sem força para respirar, sem força para ser coisa alguma olhava o homem e se perguntava.

"Por que?"

Quando chegou no trabalho, transpirando e menos atrasado do que se tivesse parado, inventou uma história absurda onde tinha encontrado um senhor passando muito mal e a assistencia o fez atrasar-se. O patrão número dois, obviamente não acreditou muito naquela justificativa esfarrapada. O homem não conseguia chegar cedo nunca e seu desempenho estava muito aquém do esperado.

Claro que o esperado era algo que era algo além, muito além do possível para o homem.

Muitos anos depois, no momento derradeiro, entre tantas perguntas o homem olha pra si mesmo e pergunta por que não chegou mais atrasado naquele dia.

"Por que?"