6.3.15

apenas um pequeno gerônimo

Se gerônimo era estimativa, estatística ou qualquer desses palavreados que não se resolve com regra de três não saberia dizer. Era com coisa mais simples que ocupava o pensador que tinha sobre o pescoço: o que, como e onde. Os três itens eram de suma importância em sua vida de simplicidades. Os dois primeiros se ocupavam de questões alimentícias e o terceiro era a respeito da localidade do seu sono. gerônimo trindade era mendigo.

Como tinha chegado lá não era de importãncia para pessoas ocupadas como nós. Tinha uma história  como tantos outros, em um tempo que parecia nunca mais. gerônimo não tinha sido capa da revista Caras, mas sabia como ninguém, transformar o objeto em lençol. Suas outras habilidades envolviam reciclagem de cigarros, administração de recursos escassos e conservação de etílicos.

Com uma técnica que não contava pra ninguém, mas que nunca foi exibida no Discovery Channel, se destacava do seu grupo. gerônimo era cheiroso. Em um ambiente de mendicância é essencial se diferenciar. Estava sempre lá, perfumado, e com roupas de um branco invejável. Claro que as roupas não eram novas, apesar de limpas,  eram surradas e amarrotadas. No rosto havia uma barba mal aparada eterna. De que outra forma, alguém daria esmola? Queremos uma cota de sofrimento explícita quando aplicamos nosso suado dinheiro na dor do próximo.

Não posso dizer que ele era feliz, ele mesmo não o seria capaz. No entanto, era um mestre sem igual na sua área de expertise. Quando indagado pelos seus generosos patrocinadores ocasionais, de que forma alguém que falava tão bem podia estar em tão degradante estado, gerônimo retornava a pergunta, com seu jeito calmo e ponderado, se eles estavam satisfeitos com as vidas que tinham.  Com um sofisma habilidoso, gerônimo invertia o jogo. No meio desse desconforto, saia com a cachacinha garantida. Ninguém se perguntava porque motivo os seus companheiros de tragédia que eram mais sujos e de fala ruim não atraiam tantas preocupações. A desgraça de gerônimo, pelo menos em um ambiente micro, vendia melhor.

Um dia desses que acontece toda hora e que nunca apareceram no jornal O Globo, a mudança atravessou bem no meio da vida de gerônimo. 

Eram vários o itens ordinários que em conjunto distinguiam aquela mudança do seus iguais: loura, alta, sensual, lábios grossos, olhos claros, cabelos lisos, um cheiro muito bom e uma voz doce aveludada. O tempo parou para gerônimo, e ele soube que nunca mais seria o mesmo. Quando perguntada, disse. 

Seu nome era Helena.

A cabeça dava cambalhotas, enquanto descobria que precisava de mais um item para sobreviver. Talvez o mais importante de todos. Depois de uns instantes de uma conversa ligeira e de um abrir e fechar de bolsas, afinal ele ainda tinha os dois primeiros itens pra resolver, ela dizia: "Fica com Deus." Ele disse: "Fica comigo?".

Não sei se estava acostumada com aquele tipo de abordagem, ou se estava distraída com algo de real valor, mas Helena virou de costas e se foi. 

A vida de gerônimo parou de caber em si mesmo. Sem muita reflexão, duas palavras de seu remoto passado, e que um dia significaram felicidade para além do límite, ecoaram em sua mente: Concurso Público.

Dessa vez Gerônimo apareceu no jornal O Globo. Não quis dar muita explicação de como tinha feito, se tinha lido apostila da lixeira, se era um gênio, ou se tinha juntado os trocados que conseguia pra pagar cursinho caro, mas falou com todas as letras pra quem quisesse ler do motivo de tamanha superação. A capa do Jornal não deixava negar: Passou!

De uma hora pra outra Gerônimo ganhava relevância. Tinha conta no Itaú, celular da Vivo e perfil no Facebook. O Discovery Channel quis fazer uma matéria sobre sua vida pregressa e na capa da revista Caras, Helena dizia: "Sim".

O casal foi convidado para falar na Ana Maria Braga e na Veja sobre os planos de casório e felicidades eternas conjuntas. Foi tanto falatório sobre o casal que é impossível você não ter visto. Se esqueceu foi por causa do tanto que temos pra administrar na nossa timeline diariamente. O que você não viu em lugar nenhum é que Gerônimo, que sabia administrar ninharia como ninguém, sabia pouco sobre fortunas. Para alguém que achava que fartura queria dizer apenas mais comida e conforto, Helena, com seus cada vez mais frequentes nãos, explicava, com pouca paciência, que a vida não podia se resumir em apenas quatro itens. 

Não podia negar que sua vida tinha melhorado. Nem podia imaginar voltar a dormir em um suporte menos confortável que uma cama da Ortobom, mas Gerônimo, percebia que era mais fácil pra ele se destacar entre os miseráveis. Se antes, tinha uma rotina mais dura, era algo que ele dominava. Era um mestre. Depois da evolução social tudo se tornou mais complexo de dominar. Algumas vezes, comer e dormir, envolviam questões extremamente complexas para sua mente mais simples. E por mais que se esforçava, raramente conseguia satisfazer os desejos intermináveis da sua esposa.

Em algum momento achou que seria mais feliz se diminuisse o escopo e pediu divórcio. Continuou a trabalhar por dois, porque Helena não era mulher de sair de casamento sem levar metade de seus bens. Não se importou. Teria menos itens pra se preocupar. 

Numa tentativa desesperada de encontrar a felicidade, voltou a encontrar os amigos de velha data, mas eles fizeram troça do vazio que continuou a sentir, e pediram esmola. Ele não era mais reconhecido como um deles. Tentou dormir no chão da rua, mas era duro demais, e por fim, por curiosidade, tentou pedir esmola.

Seus antigos amigos pediram: Vai embora.


Não posso dizer que se tornou feliz algum dia depois disso tudo. A vida tinha se tornado uma questão que não sabia mais resolver. Um dia, seu filho indagou se na época de morador de rua era mais feliz. Como era possível ser tanto com tão pouco? O senhor Trindade, percebia a verdade, não teve dia que soubesse a felicidade, e daquele seu jeito calmo e ponderado, a que sempre foi característica marcante, tirava da carteira algum dinheiro para calar o menino e sorria de um jeito distante e tímido sem nada ter o que dizer no meio de todo aquele ambiente macro.

21.4.14

Esfarelo a forma
sólida

Nem sim
Nem não

Acrescento água
mole
moldável

Talvez.

E a resposta será
honesta e direta 

Será tudo e nada.


Não sei.

11.11.13

a longa lista de culpas do sr. um homem só

a elas,
nem tão muitas.

a todas que nunca quis,
para as que desisti,
as que quis, mas pouco,
e pra aquela que nunca vou desculpar,

perdão

perdão pelo não e pelo adeus.
perdão por eu.

descobri: é no tu que se completa o eu, mas foi no longe que me quis 
meu.

foi assim
no longe
fiz-te tua.

9.11.13

meio

No meio dos prédios, das rachaduras, dos carros e dos freios.
No meio da turba e gritaria.
Bem naquele caos todo.
No turvo, no tosco e no torpe.

Uma borboleta.

Pousa em mim por um instante e se vai.
Eu sorrio porque ouvi o que ela não falou.
"Vai ficar tudo bem".

2.8.13

torto

torto sou, aceitei.
          sucedeu, aconteceu do lado de fora. 

                  eu quis. pedi. repeti.

                       preenchia. esvaziava.
                           preenchia. esvaziava.
                               ar que entra e sai.
                                  entra e sai.
                                      entra e sai.
                                        entra e sai.

                                        característica do nada que não preenche. esvazia.
                                                     fiquei.

                                                se olhei pro lado esquerdo era porque você não estava do outro lado.
                                                       ou porque eu não estava lá. nós não estávamos.

                                                             característica do nada que não preenche. esvazia.
                                                                  fui.

                                                               me perdoa, amor. me perdoa.

                                                           tão reto, você. meus caminhos tortos fazem curva.
                                                       não existe sorriso reto, meu amor. acredite, eu tentei.

                                                 e foi a curva se completar. encontrei a ti e essa retitude.

                                        me perdoa, amor. vai, me perdoa?
                                  enverga essa sua reta, diga sim querendo o não e chora, chora no meu ombro torto, nos meus braços tortos. vou te proteger das escolhas de tudo em       mim que fez tudo em ti entortar.

                           garanto, vai preencher.

                       característica do tudo que preenche. transborda.
                     fica?

                 tira essa retidão dos lábios, me sorri torto, me beija torto, me chama torto, me chama de torto, me chama?

              diz vem, eu vou. Vou torto, mas vou.
            vem, mas vem logo. anda torto comigo, meu amor do amor que é reto.

        sou todo torto é verdade, não quero negar, não nego.
mas é em ti que meu amor é reto.

30.6.13

Por todo tempo

Os poucos andares eram suficientes para dar aquele prédio o seu valor. Era percebido por ser a maior construção no começo daquela movimentada rua. Logo depois, o supermercado com seus produtos de primeira, segunda e nenhuma utilidade, era lugar comum ao observador quando precisava saciar as necessidades das quais derivava.

Paralelo a linha das construções acontecia o movimento incessante de carros que um atrás do outro cuspiam barulho para todos os lados a todo instante durante o dia inteiro.

Era entre os carros, supermercado e prédio de poucos andares que se escondia. Era uma casa simples naquele ambiente de construções respeitadas. Tinha paredes pintadas de verde e detalhes, portas e janelas de branco. Os tons eram tão claros que denunciavam a impossibilidade daquela moradia coexistir de frente a um ambiente com o tanto de gás sujo que se desprendia dos constantes automotores.

Eras possível que aquela casa sempre estivera ali?

O trajeto era comum ao observador, mas aquele detalhe não. A paisagem tão habitual ganhava um elemento totalmente novo. Como era possível ter deixado passar despercebido aquele oásis no meio daquela ordem tão caótica?

E mais absurdo ainda, como não ter notado algo que julgava tão bonito por tanto tempo?

Pensou pouco.


Colocou a culpa no barulho dos carros, na importância do supermercado e no valor do prédio, seguiu em frente repetindo pra si mesmo: aquela construção nunca estivera ali. Era quase uma oração.